O Irã mistura religião com política desde 1979. É por ordem religiosa que se apedreja mulheres adúlteras por lá. Em 1989, o escritor britânico Salman Rushdie escreveu "Os Versos Satânicos", onde fazia graça com Maomé. O aiatolá Khomeini, que mandava no Irã na época, prometeu pagar uma recompensa a quem matasse o escritor.
Eu não sou religioso, mas respeito imensamente quem é. Ela dá uma coesão de identidade comunitária a seus praticantes.
O grande problema é misturar religião com política. É mais ou menos como misturar cachaça com cerveja - ressaca na certa.
Um país do tamanho do Brasil tem gente de todas as religiões. E nem sempre o que é bom para os praticantes de cada uma delas é bom para todos os praticantes. Por isso é que a Constituição afirma que o Estado é laico, ou seja, que não existe religião oficial. Isso é pra tentar garantir que pessoas de todas as crenças, inclusive a não-crença, tenham seus direitos respeitados. Até porque várias religiões afirmam que todos nascem iguais perante Deus. O que também está na Constituição, só que diferente: todos são iguais perante a lei, que é feita pelo consenso dos homens.
Nos últimos dias da campanha eleitoral do primeiro turno, porém, foram feitos ataques religiosos aos principais candidatos.
A baixaria estava à solta. A julgar pelo tom da baixaria, vivemos num Irã cristão e ninguém me avisou.
Dilma Rousseff foi atacada pelos fãs do Serra porque falava que aborto deve ser tratado como uma questão de saúde pública. E ela estava certa: mulheres morrem todo ano por aborto malfeito e por não serem devidamente tratadas. Pior: por ser tratado como questão penal, a mulher que é pega tendo feito também responde criminalmente por isso. Escrevi a respeito nesta coluna do já saudoso MTV na Rua: "A Manicure e os Presidenciáveis".
Tudo bem que você tenha por princípio não fazer. Tudo bem que você considere, com razão, que é melhor evitar a gravidez (embora a igreja católica seja contra a camisinha). O problema é que mulheres fazem, por motivos muito pessoais. Seja por falta de condições pra criar um filho a mais, seja por falta de maturidade. Não cabe ao Estado julgar os motivos da mulher. Quem faz um aborto, ainda mais se improvisado, já tem um sofrimento grande interno.
José Serra foi atacado pelos fãs da Dilma porque teria autorizado quando ministro da Saúde o uso da pílula do dia seguinte no Brasil. Poxa, isso é uma medida importante. Usar camisinha é melhor e menos traumático? É. Mas se tudo mais der errado essa pílula no mínimo evita que uma mulher resolva depois fazer um aborto.
Tudo bem que você tenha por princípio não usar. Tudo bem que você considere que é melhor prevenir. Tudo bem até que você diga que, se não der pra prevenir, melhor o casal manter a roupa no lugar. Tudo isso é ótimo para quem aplica. O problema é que nem todo mundo consegue aplicar. As pessoas erram, porque errar é humano. Não cabe a ninguém julgar os motivos ou erros dos outros. Aliás, não tinha um cabeludo que dizia isso há 2 mil anos?
Marina Silva, que é evangélica, sofreu ataques religiosos de vários lados. Por um lado, por ser evangélica. Por outro, por ter atraído votos evangélicos e levado a eleição ao segundo turno. Por um terceiro, pelas companhias que tem no partido. O pessoal do Blog da Dilma 13 (de apoiadores) tuitou baixarias a respeito: que "cristão não sabe que o partido da Marina defende a liberação da maconha" e que "Marina é a favor do casamento gay". Aqui nos comentários alguém disse algo parecido com o contrário, que Marina acabaria com o uso de drogas e os gays.
Especificamente sobre o "casamento gay", também é uma proposta defendida por várias pessoas do partido da Dilma. Eu não seria beneficiado por essa medida, mas me guio pelo princípio de que o que os outros fazem nas suas camas só é da conta de quem é convidado a participar. Se você não foi convidado, não é da sua conta. Se foi, sempre pode recusar o convite. Agora, quando duas pessoas têm uma vida juntas precisam ter direitos juntas. Por exemplo, o de partilhar legalmente os bens comprados juntos. Ou de ter plano de saúde no nome do parceiro. Independente se são um homem e uma mulher ou duas pessoas do mesmo sexo. Isso é cidadania: todos devem ter os mesmos direitos, independente do que fazem lá na cama deles de porta fechada. Você pode não gostar da ideia de ficar com uma pessoa do mesmo sexo, por motivos religiosos ou de gosto pessoal. Ótimo: não fique. Mas respeite quem fica. Eles têm, ou precisam ter, os mesmos direitos que você.
Especificamente sobre a "liberação da maconha", é uma coisa controversa. A única droga que eu uso é vinho com suco de pêssego (vinho bom não é droga), mas observo que a política de repressão ao uso de drogas ilegais só deu poder aos traficantes. E não sou só eu. Vários caras no PT pensam assim. Vários caras no PV também. O Fernando Henrique Cardoso pensa assim, pra citar um cara do PSDB. Um dos programas especiais do Tome Conta do Brasil tem a ver com isso. Não assistiu? Assista aqui. Não existe solução pronta pra essa questão. Mas nunca existirá se o assunto não for discutido.
Todo ano de eleição é assim. Pra garantir votos, os candidatos beijam o anel de tudo o que é padre, pastor e pai de santo.
Brigam por esses votos.
E acabam abafando a discussão de questões que são importantes para a sociedade.
Dilma e Serra são políticos de cabeça bastante aberta. O problema é que não tem cabeça aberta que resista à vontade de tirar uns votinhos do adversário do jeito mais baixo possível. E aí, às favas a honestidade intelectual e o estado laico.
Religião é importante para quem a pratica. O funcionamento é importante pra quem pratica qualquer religião, ou mesmo não pratica religião nenhuma.
Respeite sua fé: não a misture com política.
Marcelo Soares
Fonte: http://mtv.uol.com.br/tomecontadobrasil/blog/misturar-religiao-com-politica-da-dor-de-barriga-num-pais-democratico-lembre-disso
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